#PenseNisso [S01E03] 1987, 2017 e os áureos tempos que eram de cobre
"É estranho sentir saudade de algo o qual mal vivi ou evitava viver"
#quemolhapratrástropeça
Que atire o primeiro mouse ou vitrola quem nunca idealizou alguma memória distante. "Ahhh, naquela época as pessoas eram mais gentis... Viver nesta cidade era mais seguro e tranquilo... Os filmes e músicas eram muito melhores...". Como diria a Mônica do meme: ata. Memórias, assim como sonhos, são compostas por um amálgama de lembranças, devaneios e desejos projetados; é fácil se deixar levar por elas e embarcar numa viagem estéril por um mundo que só existiu num futuro do pretérito que jamais se concretizou.
Nestes tempos nos quais fake news disputam atenção no WhatsApp com mensagens de bom dia e pornôs amadores, não é de se estranhar, pois, que a imagem de uma lista comparando artistas musicais de 1987 com os de 2017 tenha se proliferado tão rapidamente. E, novamente sem surpresa alguma, criticando a música atual como se fosse muito pior do que a de décadas atrás.
Gilmar Lopes, do site E-Farsas, fez um artigo importante mostrando diversas incongruências nessa lista. Por exemplo, apontando para a bizarrice de citarem Marisa Monte no terceiro lugar da seleção de 87, sendo que seu álbum de estreia só foi lançado em 89. Porém, Gilmar cita uma lista de músicas mais tocadas naquele ano que também carece de fontes mais confiáveis (até porque a Crowley só começou a monitorar playlists de rádios no Brasil em 97).
Um exemplo: "Um Certo Alguém" de Lulu Santos teria sido a 4ª música mais tocada em 87. Não faz sentido: "Um Certo Alguém" foi gravada em "O Ritmo do Momento", disco de 83. Se tivesse tido algum empurrãozinho estratégico da TV talvez esse sucesso retardatário se explicasse, mas as únicas canções de Lulu que fizeram parte de trilhas sonoras naquele ano foram "Um Pro Outro" (da novela global Brega & Chique) e "Casa" (de "Corpo Santo", exibida na Manchete), ambas do álbum gravado por Lulu em 86.
Uma pesquisa pelo acervo digital da revista Veja resgata outros fatos interessantes. A edição 1007, de dezembro de 87, afirmou: "A MPB nunca esteve tão aborrecida. Hoje, no país que deu à luz o samba, a Bossa Nova e a Tropicália, a atração musical de maior sucesso é uma cantora que não deseja ser cantora, que admite não saber cantar e se espanta com as cifras milionárias dos próprios discos - a modelo e apresentadora Xuxa. (...) Os grandes compositores, como Chico Buarque, Caetano Veloso e Milton Nascimento, exercitam-se em releituras quase sempre mornas de suas obras". Provavelmente, se existisse WhatsApp naquela época, algum incauto já teria soltado uma lista comparando sucessos de 1987 com 1957 (e afirmando que a música era muito melhor nos anos 50, claro).
Outra descoberta: em novembro de 87, as músicas mais tocadas nas FMs eram de artistas considerados "bregas", como Rosana, Marquinhos Moura, Fábio Júnior, Adriana. Nenhum deles, sugestivamente, citado na listinha comparativa do WhatsApp.
Ok, ninguém é obrigado a gostar das músicas da Marília Mendonça, Anitta ou Nego do Borel. Mas cair nessa lorota nostálgica que andou circulando por aí, sem fazer qualquer contestação, é como crer que o Hospital do Câncer foi fechado porque Pabllo Vittar recebeu R$ 5 mi via Rouanet, a Pepsi lançaria latas com o rosto do Bolsonaro e outras bobagens que só minam a credibilidade pessoal de quem compartilha essas patacoadas. Não custa lembrar, pois: em tempos de redes sociais, cada um de nós se tornou produtor de conteúdos e responsável pela sua imagem pessoal. Em tempos nos quais não é difícil encontrar figuras que acreditam em ET Bilu, terra plana, esquemas de pirâmide disfarçadas como MMN, promessas de esquerdomacho e outras ladainhas, creio que escolas precisam incluir urgentemente em seus currículos noções básicas sobre a importância de apurar informações antes de se repassar passivamente qualquer hoax difundido por aí.
Se você encontrar alguém que ainda resmunga sobre a cultura contemporânea, fica a dica: indique a ele a lista de melhores de 2017 da Scream & Yell. 126 votantes escolheram os melhores discos, músicas, shows, filmes, programas de TV e livros do ano passado. E, creiam-me, houve muita coisa boa sendo produzida em 2017 (meus votos estão disponíveis neste link).
Os indicados ao Oscar 2018 ano foram anunciados há poucos minutos. Bom pretexto para esta newsletter ter sido enviada só nesta terça (ok, eu sei que é desculpa esfarrapada), mas também para informar que, dos nove indicados à categoria de Melhor Filme, só quatro entraram em cartaz nos cinemas brasileiros: "Me Chame Pelo Seu Nome", "O Destino de Uma Nação", "Corra!" e "Dunkirk". As datas de estreia dos demais indicados:
"The Post - A Guerra Secreta": 25 de janeiro;
"A Forma da Água": 1 de fevereiro;
"Lady Bird - A Hora de Voar": 15 de fevereiro;
"Três Anúncios Para um Crime": 15 de fevereiro;
"Trama Fantasma": 22 de fevereiro.
Sobre as indicações deste ano, destaco alguns fatos em especial:
- Pela primeira vez na história do Oscar, desde 1929, uma mulher foi indicada ao prêmio de Melhor Fotografia: Rachel Morrison, graças ao seu trabalho em "Mudbound - Lágrimas Sobre o Mississipi", produção original da Netflix. Vale destacar ainda que Greta Gerwig, de "Lady Bird", tornou-se apenas a quinta mulher indicada à categoria de Melhor Direção. Antes dela, as outras cineastas que concorreram a este prêmio foram Lina Wertmuller (por "Pasqualino Sete Belezas, em 1975), Jane Campion (por "O Piano", de 1993), Sofia Coppola ("Encontros e Desencontros", 2003) e Kathryn Bigelow, até hoje a única vencedora nesta categoria, por "Guerra ao Terror" (2008).
- Pela primeira vez Christopher Nolan foi indicado ao Oscar de Melhor Direção, por "Dunkirk". Ele já havia concorrido a Melhor Roteiro Original por "Amnésia" e "A Origem", e injustamente esquecido por "Batman - O Cavaleiro das Trevas".
- Com "A Forma da Água", esta também foi a primeira indicação de Guillermo Del Toro à estatueta de Melhor Direção. Antes, Del Toro concorreu em 2007 aos prêmios de Melhor Roteiro Original e Melhor Filme Estrangeiro por "O Labirinto do Fauno".
- Os indies estão bem representados neste ano: Jonny Greenwood, guitarrista do Radiohead, disputará o prêmio de Melhor Trilha Sonora por seu trabalho em "Trama Fantasma". E Sufjan Stevens concorre ao Oscar de Melhor Música Original por "The Mystery of Love", canção do filme "Me Chame Pelo Seu Nome".
A cerimônia de premiação do Oscar 2018 será realizada em 4 de março. Antes disso, publicarei meus palpites sobre os ganhadores (meu recorde pessoal: em 2014, acertei 21 de 24 vencedores).
Né por nada não, mas creio que já surgiu a primeira sólida candidatura ao prêmio de melhor fantasia carnavalesca de 2018.
Perguntar não ofende: Se você criasse um bloco de Carnaval, qual seria o nome e que tipo de músicas tocariam durante o desfile?
- Ailton Mesquita (Um Repente por Dia): Seria um bloco tipicamente brasiliense, chamado Faroeste K-Bloco. As músicas seriam versões das canções icônicas da Legião Urbana, principalmente as que falam da capital. E, pra ficar mais fiel à letra de Faroeste Caboclo, a concentração seria na Ceilândia (que é minha cidade, inclusive), em frente ao Lote 14.
- Bruno Alves (Imagenista): As melhores ideias já existem e não fui eu que criei: um se chama Pife Floyd, um bloco que sai no carnaval de Olinda tocando músicas do Pink Floyd ao som de flautas de pífano, e o outro é o Bumba Meu Bowie, em homenagem ao camaleão. Com essas duas ideias já utilizadas, eu criaria o Bloco KraftFrevo ou FrevoWerk, que sairia pelas ruas de Olinda tocando os clássicos da banda alemã em ritmo de frevo!
- Paula Renata Borges (@paularenataborges): Meu bloco se chamaria "Quem Tem Limite é Município", e nele só entrariam marchinhas, axé e pagode dos anos 90. ;)
- Cassia Afini (@Cassia_): Se eu criasse um bloco, ele não teria um nome e não tocaria nenhum tipo de música. Fujo de blocos, e do carnaval em geral. ;-)
- Caio Costa (@blogcitario): "Bloco de Notas Carnavalescas", que tocaria marchinhas improvisadas pelos Barbixas.
- Sergio Vieira da Silva (@sergiovds): Seria o Bloco de Concreto (afinal, paulistano vive nele), com marchinhas feitas a partir das poesias de Décio Pignatari e dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos, claro. Olha que lindo ficaria uma marchinha assim:
O
NU
MERO
NÚMERO
O NÚMERO ZERO
SEM UM NÚMERO
UM NÚMERO
NÚMERO
ZERO
UM
O
NU
MERO
NÚMERO
UM NÚMERO
UM SEM NÚMERO
Pergunta da próxima semana: Qual a categoria do Oscar que deveria ser inventada, e qual filme merecia ser premiado por ela?
P.S. 1: Publicado em 1945, "A Rosa do Povo" é um dos livros mais importantes da carreira de Carlos Drummond de Andrade. Pertence a esta obra um dos meus poemas favoritos de Drummond, que sintetiza em poucas palavras as ilusões do passado: "Nos áureos tempos que eram de cobre".
P.S. 2: Se você ainda não me segue no Instagram, por favor, faça um japaraguaio feliz com o seu follow: http://instagram.com/popcabeca. Prometo não empanturrar sua timeline com selfies em restaurantes japoneses, e postar fotos e vídeos bacanudos nas Stories. ;)
P.S. 3: Se você tem algum amigo que ainda insiste em dizer que YouTube só tem conteúdos para adolescentes descerebrados, recomendo que você apresente The Nerdwriter, canal criado por Evan Puschak, para ele, com vídeos nos quais ele discute As Meninas de Velázquez, o processo de composição de "Dreams" do Fleetwood Mac, como os Beatles mudaram as capas de discos ou como E. E. Cummings escrevia um poema.
P.S. 4: Se você já viu o título da newsletter ("é estranho sentir saudade de algo o qual mal vivi ou evitava viver") sendo atribuído a Clarice Lispector, recomendo que você confira neste link a origem de um dos primeiros memes que surgiram no Twitter, em meados de 2010.
P.S. 5: Nunca é demais reforçar, né? Se você gostou desta newsletter, divulgue-a para seus amigos: http://bit.ly/AssinePenseNisso.