#PenseNisso [S02E02] Não quero luxo, nem lixo (meu sonho é ser imortal, meu amor)
Não sei se estou pirando ou se as coisas estão melhorando (é que eu sei que não adianta mesmo a gente chorar)
Ídolos movem a gente a buscar ser alguém melhor. E, quando a gente perde algum deles, sente que perdeu um farol que nos inspirava. Tive esse baque quando morreram o Ayrton Senna, o Renato Russo, o João Cabral de Melo Neto, o David Bowie, a Lygia Fagundes Telles. E, agora, a Rita Lee.
Confesso que não me habituei ainda com a ideia de pensar que este mundo não tem mais a presença de alguém que me acompanhou, com suas músicas e palavras, desde que comecei a ter noção do quanto a vida com trilha sonora é tão melhor. Mas é como bem disse o meu xará Alexandre Matias: “Não perdemos Rita Lee. Nunca perderemos Rita Lee. Ganhamos Rita Lee, isso sim.“ Ainda não me caiu totalmente a ficha do tamanho desta perda, ou melhor, do ganho, privilégio, sorte que tivemos de testemunhar em vida o talento e a coragem de uma mulher tão fantasticamente inspiradora.
Mas eu sou apenas um rapaz hetero cis latino-americano. Ao conversar pelo WhatsApp com a Cíntia Citton, percebi que ela teria mais a dizer sobre o impacto de Rita em sua vida. Convidei-a, pois, a escrever as palavras que vêm a seguir.
O que fazer enquanto o disco não vem
(texto de Cíntia Citton)
O primeiro pensamento que apareceu quando o Inagaki me perguntou se eu topava trabalhar no que eu tinha escrito em uma conversa de Whatsapp sobre a Rita Lee foi: quem sou eu para escrever sobre ela? Nenhuma especialista, é verdade. Tive a sorte de crescer enquanto ela lançava vários sucessos. Não sou aquela fã que leu tudo, que comprou todos os discos. Eu nem consegui ir a um show dela, e faz bem pouco tempo que fiquei sabendo que ela era uma das mulheres do Saia Justa (eu tava morando fora, mas, como pude perder isso????). Por outro lado, lembro que o primeiro disco que garanti juntando minhas mesadas e que não era uma coletânea de novela (que era minha estratégia de otimizar a grana investida) foi o LP de “Zona Zen”, provavelmente logo depois de ver este clipe no Fantástico de novembro de 1988. Será que foi aí que comecei a gostar de paradoxos?
Mesmo sem muita credencial, ouso convidar aqui a celebrar e também começar a processar tudo o que significou sermos contemporâneos desta mulher tão incrível. Porque ficar sem ela não vai ser fácil, mas o que ela nos deixou pode nos ajudar enquanto ela não dá um jeito de se juntar com o David Bowie e mandar um disco voador de resgate ou o raio “descaretizador” que estamos precisando tanto.
Acho que é impossível ser sintético falando de tudo o que a Rita Lee representou, de todas as portas que ela abriu e dos presentes que ela deixou pra gente.
Quando eu falo na necessidade de processarmos é porque acredito que só conforme a gente vai avançando pela vida, principalmente como mulher, consegue ir descobrindo a dimensão dos muros que ela simplesmente atravessou como se fossem só umas cortininhas (pelo menos para quem viu de fora).
Para muitas mulheres como eu, a Rita Lee ajudou muito a ensinar que era possível não seguir os scripts. Nossas mães em muitos casos conseguiram nos passar a mensagem cifrada de que não era tão legal o modelo imposto a elas, mas nem sempre conseguiam se libertar do que sentiam que não estava muito certo.
Rita Lee nos mostrou que umas tantas coisas que diziam sobre ser mulher eram balela: dava pra ser mulher, pra trabalhar, ter sucesso, ter família, ser romântica, irreverente, ser passional, falar palavrão, falar de sexo. De novo, brincou com o que parecia ser oposto e não combinar, e mostrou que não era bem assim.
Minha primeira memória dela é provavelmente de 1982, eu era superfã de “Rosa Choque” e queria entender o que significava “fazer de gato e sapato” como a Rita cantava em “Lança Perfume”.
Ela foi provavelmente a primeira artista que eu segui por mim mesma, já que pelos meus pais o que entravam em casa eram discos ou fitas da Jovem Guarda. As outras músicas eu acho que fui conhecendo numa ordem meio diferente das datas de lançamento, e até hoje tenho muita coisa por descobrir (que sorte!). Tem alguma coisa mágica em descobrir músicas lançadas há tempos e redescobrir as que a gente talvez não estivesse disponível para ouvir quando foram lançadas.
Provavelmente essa magia é parte do que fará nossa feiticeira do rock concretizar o sonho de ser imortal.
E também porque ela nos mostrou um jeito (o jeito dela) de ser livre, porque ela cantava o que realmente vivia e pensava. E isso é impactante. Ela não veio nos oferecer um curso de 10 dias para “desbloquear a sua leveza” ou vender um “playbook da liberdade”. Ela só era publicamente livre. E não se importava se você gostava disso ou não.
Tem um outro adjetivo que usam sobre ela de vez em quando: a leveza. Aqui acho importante a gente olhar com atenção. Pelo meu olhar pelo menos, a leveza dela não vinha de um medo de olhar para a dor de frente, de uma vontade de se alienar. Acredito que a leveza dela vinha dessa liberdade de ser o que queria ser sem pedir licença, sem ser só para agradar, parecer ou anunciar. Livre até para cansar um pouco de ser ela mesma e se reinventar.
O certo é que o jeito dela acabava desafiando naturalmente qualquer um que tentasse lhe jogar um rótulo, provavelmente até os adjetivos que usei.
Enfim, se você chegou até aqui, agradeço pela atenção, e espero que você me conte como é a sua visão, como esse mulherão atravessou sua vida. Pra gente continuar celebrando e processando o que foi a imensa sorte de ter habitado esse mundo ao mesmo tempo que Rita Lee, e como a gente vai levar pra frente as coisas que ela nos ensinou.
Eu até arrisquei uma tentativa de oração para Santa Rita de Sampa, mas certamente ainda dá pra melhorar bastante:
Oração a Santa Rita de Sampa
Rogai por nós, reduzidos a meros consumidores, que nadamos num mar de caretices, hipocrisias e likes.
Livrai-nos do conformismo e das gaiolas de ouro, Amém.
P.S. 1: A você, que leu a primeira edição na semana passada, uma atualização sobre o assunto que abordei, a Eurovision. A final rolou no sábado passado e foi vencida por Loreen, que já havia sido campeã em 2012 com “Euphoria” e neste ano conquistou o bicampeonato com “Tattoo”.
Com isso, Loreen tornou-se a primeira cantora a vencer duas vezes (antes, o irlandês Johnny Logan foi o primeiro tricampeão, como intérprete em 1980 e 1987 e como compositor em 1992), e a Suécia igualou a Irlanda em número de títulos: agora ambos os países contabilizam 7 conquistas na história da Eurovision.
P.S. 2: Em seu livro “FavoRita”, Rita Lee deixou três conselhos que reproduzo aqui:
O encanto nunca acaba enquanto você não cessar de se encantar;
Usem fio dental e escovem bem os dentes, assim você manterá a maioria deles quando chegar aos 70 anos;
Não se esqueçam: Carpe Diem e Carpe Noitem!
P.S. 3: Obrigado pela leitura desta edição. Deixe seus likes, comentários e sugestões na página do Pensar Enlouquece no Substack. Semana que vem tem mais!
P.S. 4: Quando a MTV Brasil encerrou atividades em sua primeira e clássica fase, em setembro de 2013 (inclusive sdds: um dia preciso escrever sobre as três ocasiões em que estive naquele prédio da Doutor Arnaldo), muita gente lembra que o último videoclipe exibido foi “Maracatu Atômico”, de Chico Science & Nação Zumbi. Mas foi Rita Lee quem embalou os derradeiros momentos do canal, com “Orra Meu”. E, antes disso, Astrid Fontenelle, que foi a primeira e a última VJ desta MTV, despediu-se citando os versos de outro clássico da Rita, “Cartão Postal”, perfeitos para encerrar esta newsletter.
“Pra que sofrer com despedida
Se quem partir não leva nem o sol, nem as trevas
E quem fica não se esquece de tudo o que sonhou?“
Ah, meu... Rita. 🥰 Sabe que fiquei surpresa que no fatídico dia, todos do meu time a conheciam. O lance é que todos estão abaixo dos 25 anos e tinham suas músicas preferidas, melhores tweets e um acabara de ler a autobiografia. A diva continuará transcendendo o tempo por sua história, obra e atitude. Vida eterna para Rita.
Inagaki! Muito bom ler seus textos por aqui, novamente. Sou dos primatas virtuais órfãos dos blogs. Estou reencontrando os blogueiros vintage por aqui no substack novamente, espero que o sistema se mantenha estavel :)