#PenseNisso [S02E03] A arte de tomar café sem açúcar e deixar de esquecer a roupa na máquina de lavar
Como um meme descompromissado me fez ficar matutando sobre a vida contemporânea e suas armadilhas cotidianas
Namore alguém (ou, no mínimo, tenha uma amizade saudável com alguém) que te mande memes. E que, ao recebê-los, não seja aquele estraga-prazeres que se limita a comentar: “ah, já me mandaram esse”. 😒
Pois bem: recebi outro dia um meme que fala sobre coisas da vida adulta. Bati o olho na imagem e… gabaritei.
O que a gente faz quando se identifica com uma lista dessas? Primeiro ri e matuta: “é isso mesmo!”. Depois, encaminha a todos de quem lembramos que também aparentam compartilhar essa visão de mundo. É a velha fórmula de sucesso do viés de confirmação: das músicas de dor de cotovelo que parecem transcrever aquele momento de fossa, das séries nostálgicas que fazem a gente lembrar dos “bons tempos” que na verdade não eram tão incríveis assim (nada que distanciamento temporal e memórias eletivas não edulcorem), e por aí vai.
Passado o impulso de repassar adiante o meme, a gente até pode parar pra refletir e contestar uma e outra coisa, aquela vibe do “não é bem assim, mas”. Eu, por exemplo, me detive no item 1, café sem açúcar. Seita na qual ingressei há pouco tempo, cerca de três meses, por um motivo prosaico: estava acabando o adoçante de casa e resolvi não fazer a reposição. Ao contrário da água com gás, que tentei apreciar sem sucesso, posso dizer que ingressei na turma daqueles que dispensam adoçar a bebida.
Mas o café sem açúcar é uma questão longe da unanimidade. Basta dar aquela espiada básica no Twitter para encontrar opiniões polarizadamente exaltadas, do mesmo naipe de outras Grandes Tretas Inúteis das Redes Sociais como aquelas que orbitam sobre temas como feijão em cima ou embaixo do arroz, biscoito vs bolacha e ovos de Páscoa vs chocolates em barra.
Não pretendo jogar gasolina nessa fogueira e dizer que pessoas que apreciam café puro têm paladar mais apurado, aquele papinho sommelier ao pior estilo Pernalonga de batom. Mas o caso é que, a partir do momento em que açúcar e adoçante deixaram de ludibriar minhas pupilas gustativas, percebi o quanto cafés em geral são torrados em excesso, justamente para disfarçar a qualidade fraca dos grãos vendidos mercados afora.
Na época em que Cazuza comparava café sem açúcar com dança sem par, em “O Nosso Amor a Gente Inventa”, não havia tantas opções de grãos nem a diversidade de cafeterias dos tempos atuais. Agora é muito mais viável apreciar um bom cafezinho puro, daqueles que revigoram o espírito e os neurônios. De qualquer modo, se você quiser continuar adoçando a sua bebida, mande bronca e seja feliz (assim como dançar sozinho tem seu valor e poupa pés alheios de pisões acidentais). ✌️
Todo adulto funcional faz seus corres, cuida decentemente do seu lar e aprecia o prazer básico de ter os boletos devidamente pagos. Valorizo também as pequenas grandes alegrias do cotidiano, como a agradável surpresa de passar em frente a um mercado e ver que a seção de vinhos está com descontos de até 40%; ou de bater aquela preguiça depois do banho tomado, e antes de pedir o Uber pra sair receber whats avisando que aquele rolê - que só topei ir porque era balada com lugar pra sentar - foi cancelado, e poderei lagartear de boas no sofá.
Mas enfim, cá estou terminando de redigir esta newsletter enquanto procrastino a declaração do imposto de renda, tomo mais um espresso e penso em como os tais sintomas da vida adulta na real mostram o quanto estamos imersos em uma sociedade consumista que nos impele a sermos ininterruptamente produtivos; uma cobrança 24/7 por eficiência e sucesso, que faz com que nos tornemos os piores patrões possíveis de nós mesmos (olá, Byung-Chul Han).
Afinal de contas, é preciso trabalhar a fim de pagar boletos e desfrutar das promoções do supermercado. Tomar café para tentar despertar neurônios exauridos; e vinho porque, oras, a realidade nos obriga a beber e chega uma hora em que precisamos relaxar. Ficamos tão cansados a ponto de celebrar o cancelamento de um rolê e podermos, ufa!, descansar em silêncio. Mas… quem disse que, nesta sociedade hipercompetitiva e representada por siglas como FOMO, TDAH e SFC, conseguimos nos desligar?
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Dispersos, desatentos, distraídos. Mesmo estando na condição privilegiada de trabalhar em home-office (e por causa disso mesmo), semana passada fui botar minhas roupas para lavar aproveitando um intervalo entre uma reunião via Google Meet e a finalização de um relatório de monitoramento. Houve um momento em que mergulhei, porém, naquele vórtex que suga a atenção de quem se distrai na rolagem infinita dos conteúdos de redes sociais, e o resultado é que só fui lembrar de tirar as roupas da máquina de lavar no dia seguinte. ¯\_(ツ)_/¯
Posso dizer que já dominei a singela arte de tomar café sem açúcar, mas ainda sou aluno repetente na disciplina de lembrar de estender roupas no varal antes que elas durmam esquecidas na máquina e amanheçam com cheiro de cachorro molhado. E não é preciso ser nenhum Einstein para descobrir como parar de fazer isso: preciso de mais momentos de descanso e melhores noites de sono.
Em “24/7: Capitalismo Tardio e os Fins do Sono”, Jonathan Crary resgata a história de um consórcio espacial russo-europeu que planejava colocar na órbita terrestre satélites que, equipados com refletores parabólicos, seriam capazes de refletir a luz do Sol para a Terra e fornecer iluminação noturna para cidades inteiras. Em outras palavras: fazer com que esses lugares perdessem a escuridão da noite e passassem a ficar iluminados durante as 24 horas do dia. Esta empreitada mirabolante, a la Black Mirror, não seguiu adiante, para o bem do sistema fisiológico e dos padrões metabólicos de animais e humanos. Crary descreve outras consequências nefastas que despencariam, feito aquelas bigornas na cabeça do coiote, em quem morasse nessa distopia:
“24/7 mina paulatinamente as distinções entre dia e noite, entre claro e escuro, entre ação e repouso. É uma zona de insensibilidade, de amnésia, de tudo que impede a possibilidade de experiência. (...) O planeta é repensado como um local de trabalho ininterrupto ou um shopping center de escolhas, tarefas, seleções e digressões infinitas, aberto o tempo todo. A insônia é o estado no qual a produção, o consumo e o descarte ocorrem sem pausa, apressando a exaustão da vida e o esgotamento dos recursos.”
Ao ler o parágrafo acima, imagino que você tenha chegado a uma conclusão similar à minha: quem precisa padecer com a iluminação artificial de satélites distópicos, quando já tem a tela luminosa de um celular para fomentar insônias?
E, em vez de deixarmos que corpo e mente mergulhem naturalmente no repouso fundamental após terem sido bombardeados ao longo de um dia inteiro pelas milhares de informações que saltam das telas do smartphone, do computador, dos monitores do metrô, dos elevadores do escritório em que você trabalha ou, pior, do condomínio em que você mora… Lá está você, iludido da silva, dizendo que ficará só uns cinco minutinhos checando as mensagens, e esquece de dormir entretido com a mãe que foi cancelada por dançar funk na festa da filha, emputecido com as novas manobras do Lira na Câmara ou vendo aquele vídeo da Tina Turner cantando “The Best” para o Senna.
A economia da (des)atenção, a sociedade do cansaço e da exaustão, os trabalhos precarizados, os relacionamentos gasosos (Bauman, os líquidos já evaporaram), os estímulos artificiais nos quais mergulhamos viciados pela busca permanente de distrações e entretenimento, os cursos que tentamos fazer nas poucas horas vagas que restam a fim de evitar a sensação de estar ficando para trás… Não me admira que cada vez mais pessoas apelem a zolpidem, fluoxetina e outras drogas para tentarem dormir o mínimo necessário. Se dormir realmente é para os fracos, como reza aquele clichê amarfanhado e cada vez mais esvaziado de sentido… Nunca tive tanta inveja dos fracos.
Em meio ao caos da era Tudo ao Mesmo Tempo Agora, entendo até demais a sensação de paz trazida por ver a minha pia assim, com todas as louças lavadas. Ao menos algum aspecto da vida contemporânea conseguimos ter, ainda que de forma momentânea, sob o nosso controle.
No começo de 2020, éramos todos mais ingênuos. A coisa toda parecia estar ruim o suficiente, mas mal sabíamos o quão profundo era o pré-sal naquele fundo de poço.
Foi naquele ano bissexto que iniciei um projeto chamado #366Cafés no meu perfil do Instagram. Minha ideia era de encontrar fisicamente 366 pessoas diferentes ao longo do ano de 2020; amigos de infância, gente que admiro e com quem troco ideias há tempos, pessoas que não conhecia ainda e que mandaram DMs dizendo que estavam interessadas em tomar um cafezinho. E, depois, escrever 366 textos relatando como foram cada uma dessas prosas.
O projeto começou bem, encontrei muita gente fina, elegante e sincera, as repercussões estavam sendo ótimas… Até que veio a pandemia e o isolamento social, e não tive mais como prosseguir com os cafés. Houve quem sugerisse que eu insistisse com os #366Cafés na forma de lives, como meio mundo começou a fazer no Instagram. Mas… a intenção do projeto era justamente de desvirtualizar pessoas. E, assim, engavetei a coisa toda.
Quando vi que a OMS declarou o fim da Covid-19 como uma emergência de saúde global, enxerguei uma simbologia e a possibilidade de um recomeço. E decidi retomar os #366Cafés. Publiquei recentemente os relatos de meus encontros com Alexandre Carvalho, Odele Souza, Emílio Moreno e Cíntia Citton, e mais 362 virão por aí. Em tempo: se você mora em São Paulo ou passará alguns dias por estas bandas ao longo dos próximos meses, e deseja participar do projeto, deixe um comentário e vamos combinar essa prosa. :)
E, claro, me siga no Instagram (@popcabeca) para acompanhar o #366Cafés!
A vida é l0k4 e imprevisível, mas continua sendo incrível. Melhor dizendo: a vida é boa e cheia de possibilidades. A vida é boa e cheia de possibilidades. A vida é boa e cheia de possibilidades.
Um dia recebi um amigo em casa e esqueci de colocar o açúcar na mesa pro café pois pra mim todo adulto toma café sem açúcar, vê se pode uma coisa dessas? Sua newsletter foi mais uma lembrança de que não é bem assim.
Acho que nós que tomamos café sem açúcar precisamos esclarecer que a ideia é tomar café BOM sem açúcar. De fato, tomar aqueles pós super torrados com mato e milho no meio de qualquer jeito é uma penitência kkkkk
Bom ler você no universo das newsletters! Já seguia em outras redes desde os tempos mais primórdios. Um abraço!